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Serão os cães também humanos?

dog scan 500Eu sei que a pergunta que consta no título parece descabida, contudo faz mais sentido do que o caro leitor pensa. Mas vamos por partes, porque existe muito a falar antes de chegarmos à pergunta do título, mas prometo que valerá a pena! O neurocientista Gregory Berns estudou a mente humana no início da sua carreira. Usando a tecnologia da ressonância magnética, que acompanha o fluxo do sangue para as diferentes áreas do cérebro, ele procurou encontrar correlações entre os padrões mentais internos das pessoas e os seus comportamentos no “mundo real”, assim como decisões e preferências.

Até que em 2011 decidiu centrar o seu estudo em algo nunca antes abordado: o cão doméstico. E em vez de simplesmente estudar o comportamento canino (como tem sido feito praticamente desde sempre) ele e os seus colegas começaram a examinar a arquitectura interna e os padrões do cérebro dos cães, mas usando as mesmas ferramentas que os ajuda a melhor entender o cérebro dos seres humanos. Berns sempre foi um amante de cães e a morte do seu fiel amigo Newton levou-o a pensar na forma como os cães nos veriam a nós, humanos, e se eles nos amariam tanto quanto nós os amamos a eles.

Mas o simples acto de conseguir “olhar” para dentro do cérebro canino revelou-se um grande desafio dado que para conseguir uma ressonância magnética é necessário que o individuo esteja totalmente imóvel durante pelo menos trinta segundos. E o desafio era bastante exigente uma vez que a anestesia não era uma opção viável: a anestesia iria levar a que a imagem apresentada na ressonância magnética fosse a de um cão anestesiado e não a de um cão calmo e relaxado. Para resolver este problema Berns recrutou alguns cães da comunidade local e gradualmente treinou-os para que conseguissem subir degraus até chegarem a uma mesa. Lá chegados, tinham de descansar a cabeça sobre uma almofada colocada no interior do aparelho de ressonância magnética e permanecer imóveis durante períodos de trinta segundos de cada vez. Para lidar com o ruído do dispositivo (que para quem não sabe pode ultrapassar os 95 decibéis, algo como um martelo pneumático a alguns metros de distância) foram colocados auscultadores com sons típicos da natureza (como aqueles discos apenas com o chilrear dos passarinhos, está a ver o género?).

Ao todo conseguiram treinar com sucesso uma dúzia de cães e todos eles contribuíram para esta investigação. Obviamente que a pesquisa ainda se encontra numa fase inicial, mas à medida que vão conseguindo investigar a superfície do cérebro canino descobriram que, de certa forma, a sua actividade reflecte a do cérebro humano numa extensão muito maior do que aquilo que era esperado. Os cães foram treinados para reconhecer dois gestos diferentes, um com cada mão: um que significava que iriam receber imediatamente uma recompensa (neste caso um cachorro-quente) e outro que significava que não teriam direito a nenhuma recompensa. Tal como os cientistas tinham previsto, o primeiro sinal desencadeava actividade elevada numa área chamada núcleo caudado, que é rica em receptores para a dopamina (um neurotransmissor envolvido na sensação de prazer). Nos humanos (e segundo o estudo, também nos cães) a actividade no núcleo caudado está relacionada com o desejo em ter algo que causa prazer assim como a satisfação envolvida em obtê-lo.

Mas as surpresas não ficaram por aqui dado que numa experiência posterior colocaram cães sentados no dispositivo e expuseram-nos aos cheiros de seres humanos (tanto dos seus donos como de completos estranhos) e outros cães (tanto de cães com que viviam como de cães desconhecidos). Novamente viram um aumento da actividade no núcleo caudado, mas apenas como resposta a um dos aromas. Neste caso, o sistema de recompensa só parece ser activado em resposta ao cheiro de um humano familiar, algo que os cientistas consideraram ser bastante surpreendente. Para perceberem de que forma a actividade cerebral dos cães está correlacionada com as acções dos respectivos donos, os cães foram colocados na ressonância magnética e os humanos mandados sair da sala, para logo de seguida voltarem a entrar. Mais uma vez foi registada a activação do núcleo caudado.

Berns interpreta estes resultados como indicações de que, em alguns aspectos, os processos mentais dos cães podem não ser assim tão diferentes da dos seres humanos. Eles estão perto o suficiente, para que possamos descrevê-los com segurança, com palavras que muitas vezes não se aplicam aos animais: a actividade mental representa emoções, e talvez até mesmo amor.

Ele admite que a ideia é controversa. Mas, ressalva, a pesquisa sugere que o cérebro humano e o cérebro canino não são tão radicalmente diferentes, como poderíamos ter imaginado inicialmente.

“Obviamente que o cérebro do cão é muito menor, e eles não têm tanto córtex como nós humanos, mas algumas das principais áreas em torno do tronco cerebral (os gânglios da base onde se insere o núcleo caudado) parecem-se muito com as dos seres humanos “, diz Gregory Berns. Os cães podem não ter o hardware necessário para pensamentos complexos e raciocínios de nível superior, mas têm as estruturas necessárias para as emoções mais básicas.

Tudo isto também faz sentido do ponto de vista evolutivo. Evoluímos o córtex, necessário para os pensamentos mais complexos, depois de divergirmos de todas as outras espécies de animais, mas áreas como os gânglios basais desenvolveram-se previamente. Por isso a nossa capacidade de sentir emoções existia muito antes na nossa história evolutiva, em antepassados que compartilhamos com muitos outros mamíferos, incluindo os cães.

Os amantes de cães vão certamente achar todas estas ideias óbvias, mas o trabalho de Berns atraiu uma enorme quantidade de críticas. Uma das maiores criticas que lhe é apontada é contra o uso de palavras como “emoção” e “amor” para cães. Muitos dizem que o seu apego a nós é simplesmente um resultado do condicionamento, inteiramente baseado no desejo por comida, em vez de nas conexões emocionais mais profundas que sentimos por outros seres humanos.

Mas Berns espera responder a estas críticas com o seu trabalho futuro de ressonância magnética: ele irá comparar a actividade cerebral de cães que estão a ser alimentados por mecanismos automatizados com a de cães que estão a ser alimentados por seres humanos. Ele espera mostrar que os cães desenvolvem qualitativamente, diferentes relações com os seres humanos, ressalvando a força desses anexos.

Decidiu então escrever um artigo para o conceituado New York Times onde defende uma polémica tese e que teve como título: “Os cães também são humanos” (percebe agora, caro leitor, a pergunta do título deste artigo? Eu disse que ia demorar mas que valia a pena!). 

Diz então Berns que se os animais realmente são capazes de sentir emoções que normalmente consideramos caracteristicamente humanas, então não devem ser tratados como meros objectos ou propriedade. Em vez disso devem de lhes ser dados alguns dos direitos que nós associamos apenas a humanos, ou seja respeito pelas suas preferências e bem-estar e a abolição de corridas de cães (apenas para citar alguns exemplos).

Obviamente que existe um longo caminho a percorrer, tanto em termos de provas científicas como também de políticas, antes dos cães serem tratados como humanos. Mas Berns cita uma recente decisão do Supremo Tribunal que invocou evidências neurocientíficas (especificamente, a constatação de que o cérebro juvenil é menos desenvolvido do que o de um adulto e, como tal, não deve ser sujeito às mesmas punições) como uma indicação de que as nossas leis, inevitavelmente, vão seguir a ciência. O próximo passo para ele e para os seus colegas é manter o foco das suas investigações nas mentes dos cães tentando assim descobrir quão profundas são as semelhanças mentais com os humanos.

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