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A Ditadura que o mundo continua a ignorar…

Infelizmente o mundo está repleto de violência e a cada segundo que passa é cometida uma atrocidade sobre pessoas, animais ou o meio ambiente. Mas se na maioria dos casos a imprensa está atenta, o caso que lhe trago nesta crónica tem passado ao lado de tudo e todos.

Ou melhor, existe informação suficiente, o mundo é que tem escolhido ignorar esta ditadura. Estamos a falar de uma das mais duras e violentas ditaduras do mundo. Esta é a ditadura…da Eritreia. Sim, leu bem: da Eritreia.

No início de Junho a Organização das Nações Unidas divulgou os resultados de uma investigação de um ano sobre os direitos humanos na Eritreia. O que encontraram foi horrível.

A comissão de inquérito da ONU argumentou que a Eritreia estava a operar um governo totalitário, sem responsabilidade e sem Estado de direito, dizendo que têm lugar, por exemplo: “generalizadas, e graves, violações sistemáticas dos direitos humanos”.

O relatório diz ainda: “a comissão também considera que as violações nas áreas de execuções extrajudiciais, tortura (incluindo tortura sexual) e trabalho forçado podem constituir crimes contra a humanidade”.

No entanto, inexplicavelmente, parece que o relatório não conseguiu produzir qualquer indignação junto da esmagadora maioria das pessoas. Por sua vez os relatórios das Nações Unidas sobre alegados crimes contra a humanidade na Coreia do Norte ou sobre o abuso dos direitos humanos em países como a Arábia Saudita ou o Qatar tiveram amplo destaque a nível mundial. Tornaram-se casos virais, comentados e partilhados por todo o mundo.

Infelizmente as terríveis, e chocantes, acusações contra a Eritreia não produziram nenhum resultado “viral”.

Mas porque não foi atingido esse resultado “viral”? Certamente que não se deveu à gravidade das acusações. Sim, porque crimes contra a humanidade é uma das acusações mais graves que podem existir e é praticamente impossível ler o relatório completo das Nações Unidas sem ficar chocado, revoltado e a clamar por justiça.

Agora é difícil imaginar, mas inicialmente as esperanças eram bastante elevadas para a Eritreia quando, em 1993, ganhou a independência da Etiópia após 30 anos de guerra civil. Desde então que o presidente Isaias Afwerki não deu qualquer espaço para a existência de oposição.

O relatório da ONU descreveu a Eritreia como “um estado policial onde a população vive em constante sobressalto com receio de estar a ser monitorizada”.

Uma das testemunhas ouvidas pela ONU diz, basicamente, tudo em muito poucas palavras: “Quando estou na Eritreia sinto que não posso nem sequer pensar, porque tenho medo que as pessoas que me rodeiam possam ler os meus pensamentos “.

A investigação da ONU descobriu que o sistema efectua prisões e detenções arbitrárias (com tortura e desaparecimentos forçados durante largos períodos de tempo, ou até para sempre).

E mesmo aqueles que não cometem nenhum crime podem acabar na prisão, por tempo indefinido, e encarregues de realizar trabalho forçado. “Então, mas se tudo isso acontece porque é que as pessoas não se limitam a fugir?”. Pois, dito assim pode parecer fácil, mas acredite que não é. Escapar não é uma opção realista para a esmagadora maioria: aqueles que tentam fugir do país são considerados “traidores” e existe uma política de “atirar a matar” na fronteira. Ou seja, ou são bem-sucedidos e arriscam-se a nunca mais poder voltar ao seu país, ou falham e são considerados traidores ou então são mortos ao tentarem passar a fronteira.

“Mas se tudo isto é verdade como conseguiu a ONU realizar este relatório? Sim, porque certamente que a Eritreia não lhes deve ter facilitado a vida…”. Pois, obviamente que não. Para produzir este relatório esteve envolvida uma grande dose de risco, coragem e loucura. O governo da Eritreia recusou-se a dar acesso às Nações Unidas para proceder á sua investigação, o que levou a que a equipa de investigadores tenha entrevistado 550 testemunhas (provenientes de outros países africanos). Foram ainda aceites 160 observações, por escrito, de pessoas que viviam na altura (ou viveram no passado recente) na Eritreia e que aceitaram dar o seu testemunho. Contudo a tarefa revelou-se muito complexa uma vez que a maioria das pessoas recusou-se a colaborar, mesmo que fosse de forma anónima, alegando ter medo das eventuais represálias de que poderia sofrer no futuro.

Em 2014, por exemplo, a Human Rights Watch colocou a Eritreia “entre os países mais fechados do mundo” e apontou para “serviço militar indefinido, tortura, detenções arbitrárias e graves restrições à liberdade de expressão, associação e religião”. Por sua vez a Reporters Without Borders classificou repetidamente a Eritreia como “o pior país do mundo para a liberdade de imprensa sendo inclusivamente pior do que a Coreia do Norte”.

O relatório da ONU veio trazer um peso adicional, e importante, a estas alegações, contudo não foi o primeiro. Anteriormente já diversos académicos e investigadores especializados nos direitos humanos tinham denunciado o que estava a acontecer na Eritreia mas, infelizmente, os resultados foram os mesmos: ninguém se importou verdadeiramente. Ou seja, até agora todos falharam em trazer os crimes cometidos na Eritreia para as primeiras páginas dos jornais/televisões/sites americanos e europeus.

Os investigadores especialistas nos regimes autoritários africanos afirmam que o controlo do regime eritreu, sobre a respectiva população, é substancialmente diferente do que acontece nos restantes países africanos. Sendo que merece nota de registo o facto de os serviços de inteligência da Eritreia serem mais avançados do que seria de esperar e a prática de punir famílias inteiras pelos crimes de um só membro.

Mas, dito tudo isto, a pergunta que se impõe é: de quem é, realmente, a culpa? Para além da resposta óbvia há uma abundância de argumentos históricos que explicam o motivo pelo qual o mundo deveria prestar mais atenção ao que está a acontecer na Eritreia. Em primeiro plano estarão sempre a Itália e a Grã-Bretanha dado que a Eritreia foi uma colónia de ambos os impérios. Mas os Estados Unidos da América (EUA) também têm a sua quota-parte de responsabilidade uma vez que permitiram que a Etiópia incorporasse a Eritreia. E tudo com o objectivo de manter a base militar de Kagnew Station no país. Além de todos estes factores, a Eritreia tem uma história difícil com os seus vizinhos da África Oriental (actualmente a Eritreia está sob a alçada disciplinar da ONU por ter apoiado Al-Shabab, o grupo islâmico somali, e muitos outros, em toda a região).

Mas se até há muito pouco tempo atrás não havia nenhuma razão plausível para a Europa prestar atenção à situação da Eritreia, hoje em dia não é possível dizer o mesmo. Os eritreus compõem uma grande parcela dos migrantes que tentam (com, ou sem, sucesso) atravessar o mar Mediterrâneo em frágeis barcos em busca de asilo no continente europeu.

De acordo com o Alto comissariado das Nações Unidas para os Refugiados mais de 22 por cento daqueles que fizeram a citada viagem em 2014 eram provenientes da Eritreia, perdendo apenas para os sírios (que ocupam assim o primeiro lugar). Eles não fogem por causa de uma guerra civil como acontece na Síria, mas sim por causa das incontáveis restrições que o governo do seu país coloca nas suas vidas. Como afirmou um eritreu que conseguiu escapar da ditadura do seu país: “é uma gigantesca prisão psicológica”.

“Estas acusações são gravíssimas, como reagiu o governo da Eritreia?”. Pois, como pode deduzir não reagiu da melhor forma. Num comunicado divulgado recentemente o relatório da ONU é apelidado de “uma farsa política” e afirma que o ataque não é “tanto sobre o governo, mas sim a um povo civilizado e a uma sociedade que prezam a dignidade e os valores humanos.” Ou seja: foi a resposta esperada se tivermos em conta tudo o que se disse nesta crónica.

A conclusão é muito simples: é preciso denunciar o que está a acontecer na Eritreia. E também é necessário agir, protegendo os muitos milhões que, diariamente, sofrem na pele o poder do seu governo. Quanto mais tempo a Europa e os EUA levarem para agir, mais pessoas sofrerão e perderão as suas vidas no regime do Presidente Isaias Afwerki.

Será que foi preciso estes milhões de pessoas tentarem chegar, em massa, à Europa para haver uma tomada de posição? Antes o assunto passava-nos ao lado, mas agora diz-nos directamente respeito. Até quando vamos permanecer impávidos e serenos? Até quando vamos permitir que estes abusos de poder aconteçam? Até quando vão ter os eritreus de esperar pela chegada da democracia? Era muito bom ter resposta para todas as questões (e tantas outras que ficam por colocar).

Agora o leitor pertence ao cada vez maior grupo de pessoas que conhece o caso da ditadura que o mundo continua a ignorar. O que vai fazer com esta informação? Vai guardar apenas para si e permitir que nada seja feito? Ou vai dar o humilde contributo ao partilhar a palavra e ajudar todo um povo a lutar pela sua liberdade? A escola é sua caro leitor. Aproveite bem o facto de ter liberdade de opinião e pensamento e viver em democracia. Nunca se sabe o dia de amanhã….

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