As cicatrizes invisíveis na saúde mental das pessoas deslocadas à força
1 em cada 5 pessoas refugiadas enfrentam problemas de saúde mental como angústia, ansiedade, depressão, psicose e perturbação bipolar. No Dia Internacional da Saúde Mental, a Portugal com ACNUR alerta para as cicatrizes invisíveis carregadas por quem é forçado a fugir e a importância do apoio psicossocial para refazerem as suas vidas.
Para assinalar o Dia Internacional da Saúde Mental, a Portugal com ACNUR, parceiro nacional da Agência da ONU para os Refugiados (ACNUR), acaba de lançar uma nova campanha de sensibilização e angariação de fundos onde procura alertar para a importância da promoção da saúde mental entre pessoas deslocadas. “É urgente o investimento em programas de saúde mental e apoio psicossocial para as pessoas deslocadas e para as suas comunidades de acolhimento, para preservar a esperança e o potencial de gerações inteiras. Ignorar essa necessidade é comprometer o futuro de sociedades resilientes e mentalmente saudáveis”, reforça Joana Feliciano, Responsável de Marketing e Comunicação da Portugal com ACNUR.
As pessoas deslocadas, quer seja devido a conflitos, a perseguições, vítimas de violações de direitos humanos e/ou desastres naturais, encontram-se numa posição muito vulnerável e estão expostas ao trauma e a um grande nível de stress psicológico. Na origem destas perturbações estão a separação das famílias, a xenofobia, a falta de oportunidades de subsistência, as viagens perigosas e a exposição a cenários extremos, como os de guerra. “Ninguém está preparado para estas experiências”, afirma Inna Chapko, uma psicóloga ucraniana que vive agora como refugiada na Polónia, “mas a maioria dos refugiados que passam por situações stressantes não pensa em pedir ajuda. Continuam a viver com a ‘mentalidade de sobrevivência’ que desenvolveram durante os tempos de crise, e as suas feridas só se aprofundam”.
Tratam-se de situações extremas que afetam significativamente o bem-estar e a saúde mental destas pessoas. No caso dos conflitos, por exemplo, o ACNUR revela que cerca de 22% dos adultos que experienciam estes contextos acabam por sofrer de perturbações de saúde mental. A Organização aponta também para que 1 em cada 5 pessoas refugiadas sofram de problemas de saúde mental como angústia, ansiedade, depressão, psicose e perturbação bipolar. Existem ainda casos mais complexos em que as pessoas deslocadas acabam por apresentar sintomas de stress pós-traumático ou risco de suicídio.
No caso do suicídio, as populações deslocadas apresentam à partida um maior risco, devido a todas as experiências que viveram antes da fuga, durante a mesma ou até mesmo depois, quando tentam reintegrar-se nas comunidades de acolhimento e refazer as suas vidas. As crianças e os adolescentes que nalgum momento foram expostos à violência ou que vivem em circunstâncias extremamente difíceis são quem gera maior preocupação, sendo que a violência, a negligência ou o abuso infantil aumentam o risco de suicídio numa fase posterior da vida. Por outro lado, situações de violência de género associadas à deslocação forçada constituem um dos principais fatores de risco para o suicídio em raparigas e mulheres. Também as longas estadias em exílio, muitas vezes, em condições adversas aumentam consideravelmente os riscos de problemas de saúde mental, incluindo a automutilação e o suicídio.
A Agência da ONU para os Refugiados identifica também uma relação bidirecional entre a saúde mental, a pobreza e a perda de meios de subsistência: por um lado, as pessoas que vivem numa situação de pobreza, que perderam os seus meios de subsistência e se veem num contexto de exclusão social têm mais propensão para vir a enfrentar problemas de saúde mental; por outro, estados generalizados de depressão, de desespero e de falta de esperança e a predominância de pensamentos negativos impedem as pessoas de utilizar o seu potencial para encontrar soluções. “Num mundo repleto de desafios e perigos, a verdadeira humanidade reside na nossa capacidade de estender a mão e cuidar uns dos outros. Através da campanha de sensibilização e angariação de fundos da Portugal com ACNUR, estamos a afirmar o nosso compromisso em apoiar as pessoas forçadas a fugir que enfrentam adversidades, protegendo não apenas a sua saúde mental, mas também a dignidade e esperança que todos merecem”, afirma a responsável de Comunicação e Marketing Joana Feliciano.
Programa de apoio psicossocial do ACNUR já auxiliou mais de 472 mil pessoas deslocadas
A saúde mental tornou-se, assim, uma prioridade para o ACNUR, com a Organização a apostar cada vez mais no desenvolvimento de um programa de saúde mental e apoio psicossocial que ajude estas populações a enfrentar os desafios da deslocação, a cuidar das suas famílias, garantir meios de subsistência e contribuir para as comunidades que as acolhem. Tratam-se de intervenções individuais, familiares e em grupo adaptadas às diversas necessidades de homens, mulheres, raparigas e rapazes de qualquer idade, etnia, origem e religião, bem como a pessoas com deficiência e a outros grupos marginalizados e vulneráveis da comunidade de refugiados. Só no primeiro semestre de 2022, este programa permitiu ao ACNUR prestar serviços de saúde mental e apoio psicossocial a mais de 472 mil refugiados, requerentes de asilo, respetivas famílias e cuidadores.
No Uganda, Paul, um refugiado congolês de 66 anos que vive no campo de refugiados Nakivale, partilha o seu testemunho: “Há nove anos, tornei-me refugiado. Onde vivo, as pessoas dizem que sou um pai inútil, porque não consigo tomar conta de mim e da minha família. Sempre senti que não me encaixava. Isso deixou-me sem esperança e isolado. Sentia-me inútil e não via que tinha futuro”. Mas foi graças ao apoio do ACNUR que voltou a reencontrar a esperança e a força para reerguer a sua vida. “Nos grupos de socioterapia aprendi muito e fiquei sensibilizado com as diferentes experiências partilhadas e com a forma como as pessoas lutavam. Isso abriu-me os olhos e mudei. Sinto que agora sou uma pessoa melhor na minha comunidade”, conta.
Contudo, em muitos dos locais onde decorre o acolhimento destas pessoas deslocadas, a presença de profissionais especializados em saúde mental, sobretudo para crianças e jovens, é quase inexistente. E mesmo quando estão presentes são insuficientes para dar resposta às necessidades das populações. Por isso, a Agência da ONU para os Refugiados tem recorrido cada vez mais às próprias comunidades para enfrentar estes obstáculos e apoiar os refugiados com os seus problemas de saúde mental e psicossociais. Sempre que possível, o ACNUR dá formação aos voluntários que apoiam as suas intervenções para orientarem os refugiados no acesso a estes serviços, promovendo simultaneamente a coesão social e o apoio mútuo.
Uma intervenção particularmente importante no âmbito das respostas de emergência, onde os trabalhadores humanitários podem utilizar os primeiros socorros psicológicos para apoiar as pessoas no rescaldo imediato de acontecimentos extremamente stressantes. Para o ACNUR é crucial incluir a saúde mental e o apoio psicossocial no planeamento das respostas humanitárias e incentivar os Estados a integrarem os refugiados e as pessoas deslocadas nos serviços nacionais e nos sistemas de cuidados de saúde existentes.