Para quem cresceu no início dos anos 90 a vida resumia-se a duas coisas: desenhos animados e futebol. Sim, tínhamos de ir à escola. Sim, tínhamos de fazer os trabalhos de casa. E sim, a sopa e os vegetais eram para comer todos até ao fim e sem resmungar. Mas com mais ou menos resmunguice ou birra nós fazíamos sempre o que nos era pedido/mandado (até porque para nossa infelicidade não tínhamos outra alternativa). E fazíamos tudo porque tínhamos sempre um de dois objectivos: ir jogar à bola ou ver desenhos animados.
As crianças/adolescentes de hoje em dia têm um sem-fim de opções para ocupar o seu tempo livre (ou o tempo que devia de ser de trabalho/estudo e acaba por ser de lazer), mas os petizes do início dos anos 90 estavam condenados a poucas opções. Primeiro: não existiam os computadores (sim, porque o que existia nem sequer conta como computador tendo em conta o sabemos e temos hoje!) e a internet só podia fazer parte de um filme de ficção científica de um qualquer realizador louco. Consolas de videojogos (bolas, que não usava esta expressão vai para vinte anos!) eram outra das nossas perdições, contudo a qualidade ainda arcaica dos jogos e as televisões pequenas e com pouca definição ajudavam a que o futebol real (de rua) ganhasse uma confortável vantagem.
E é do Futebol de Rua que vos quero falar esta semana. Quem o praticou sabe que o mesmo tinha por base regras bastante exigentes e que deviam de ser cumpridas à risca. Para aqueles que, como eu, passaram quase mais tempo da sua juventude na rua do que em casa, este artigo será uma viagem ao passado. Dará vontade de voltar atrás e viver tudo de novo, o bom e o mau; as vitórias no último minuto e as gigantescas “cabazadas” sofridas; os cabeceamentos épicos onde parecíamos voar em direcção à bola e as “aterragens” (era assim que o meu avô lhes chamava e eu sempre achei que era uma boa definição) que levavam os nossos inocentes joelhos a raspar no alcatrão e que nos deixavam autênticas “marcas de guerra”.
Vamos então às regras.
1º- O gordo é sempre o Guarda-redes (excepção feita a quando havia alguém que era guarda-redes ou que se voluntariava para ir à baliza).
2º- O jogo termina quando todos estão cansados ou quando alguém tem que se ir embora.
3º- Embora o resultado esteja 20 a 0, quando queremos acabar o jogo impera o: “quem marcar, ganha!!!”
4º- Não há árbitro e só são marcadas as faltas que forem mesmo muito claras, ou se alguém sair a chorar.
5º- Não há foras-de-jogo, algo que ajudava a que a eventual assistência feminina conseguisse acompanhar melhor o jogo (piada sexista, eu sei, mas é brincadeira não levem a peito).
6º- Se o dono da bola se chateava…o jogo acabava imediatamente (quando eles tinham mau perder era uma chatice, não era?)
7º- Os melhores jogadores não podem jogar na mesma equipa e são eles que escolhem o resto da equipa
8º- Ser o último a ser escolhido é a maior humilhação possível não podendo ser compensada por qualquer outra acção ou atitude.
9º- Nos livres directos, a barreira vai estar sempre mais perto da bola do que seria suposto e a equipa atacante vai sempre reclamar na esperança de que a barreira recue mais uns passos.
10º- A partida tem uma pausa quando passa um adulto ou uma senhora com um bebé.
11º A partida parava quando a bola entrava pelo vidro de alguma casa, café ou carro…ou quando passava um camião, autocarro ou carro. Se fossem motas ou bicicletas…seguia o jogo!
12º- Quando a bola ia para debaixo de algum carro ou camião ninguém queria ir “espojar-se” no chão para a ir de lá tirar.
13º- Os que não sabem dar um pontapé na bola, são suplentes ou quanto muito…defesas-centrais para não atrapalharem os que sabem realmente jogar à bola (eram estes os últimos a ser escolhidos, obviamente).
14º-Se chegam os mais velhos, temos que sair do campo, mas não, sem protestar primeiro (não valia de nada, mas era uma demonstração de atitude!).
15º- Há sempre um vizinho que não te deixa jogar ou que ameaça que te fica com a bola!
16º- Se se aposta alguma coisa, jogamos como se fosse uma Final Europeia!
17º As balizas são duas pedras, ou latas, mas vai haver sempre uma equipa que tem a baliza mais pequena do que a outra. À falta de uma bola real tudo servia: latas, garrafas e principalmente tampas de garrafas de plástico.
18º Quando uma equipa marcar um golo de chapéu, a equipa adversária vai gritar sempre “FORA” numa vã tentativa de que o golo não seja validado.
19º Os lançamentos de linha lateral são marcados com o pé e é possível atirar contra um adversário e seguir a jogada (digamos que as regras não eram o nosso forte).
20º- Num penalty, o gordo sai sempre da baliza e quem defende é o melhor jogador da equipa.
Podemos ter crescido e passado a dar prioridade a outras coisas. Podemos até ter deixado o Futebol de Rua. Mas o Futebol de Rua nunca nos deixará a nós. Permanecerá para sempre vivo na nossa memória, mas também nas nossas mãos, cotovelos, joelhos e pernas através das cicatrizes de outros tempos. As bolas de futebol guardavam por entre os farrapos os nossos sonhos, ambições, ilusões, risos e gargalhadas, lamentos e choros ocasionais.
Hoje somos adultos e temos vidas responsáveis, isto até ao momento em que aparece uma bola de futebol. Aí voltamos a ter nove anos de idade, o nosso coração volta a palpitar, dá-nos uma súbita vontade de correr para a “redondinha” e fazer um passe para golo ou rematar uma “bujarda” indefensável, correndo depois de braços abertos para um público invisível, festejando aquela conquista com adeptos que apenas existem na nossa mente. Na vida real podemos ser apenas mais um, mas ali, dentro de campo e com uma bola de futebol pela frente, somos especiais, somos craques, somos goleadores, somos capazes de tudo.
O Futebol de Rua é mais complexo do que parece e apenas quem não o praticou na idade certa não sabe os ensinamentos para a vida que de lá podemos retirar.