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“Se tivermos de ir à Lua de cada vez que queremos ver os doentes, afastamo-nos deles”

O coordenador do Centro de Referência de ECMO do Centro Hospitalar Universitário de São João destacou os “bons resultados” alcançados no combate à pandemia de covid-19, apesar da “visão diferente” adotada em relação a outros serviços.

Em entrevista ao Expresso, Roberto Roncon recordou o momento em que o São João, no Porto, recebeu a primeira paciente com covid-19.

“Havia muito medo”, frisou.

“Até porque a forma como foram desenhados todos os equipamentos de proteção individual não foi consensual, porque o que estava a ser pensado não era sustentável, não haveria equipamentos para todos e não era necessária toda aquela parafernália”, sustentou.

À data, já o coordenador tinha definido que não iria ser usado o ‘fato de astronauta’, uma “abordagem copiada do ébola”.

“Foi um assunto delicadíssimo, porque tínhamos uma visão diferente em relação aos outros serviços, que foram inflexíveis numa abordagem copiada do ébola. Criou-se um desconforto, porque não queríamos um hospital com dois padrões, mas se adotássemos o que estava a ser adotado não seria sustentável – e não há nada pior para a equipa do que mudar as regras a meio do caminho. O tempo veio a dar-nos razão”, salientou.

“Se tivermos de ir à Lua de cada vez que queremos ver os doentes, afastamo-nos deles”, explicou.

A equipa teve o cuidado de explicar à paciente, que “estava muito tranquila”, que os equipamentos eram para proteção dos profissionais, “não era nojo dela”.

“Sentir a repulsa dos outros foi uma violência enorme para os doentes. É muito estigmatizante”, afirmou.

Graças aos tratamentos de suporte de cuidados intensivos, o Centro de Referência de ECMO (um equipamento que permite dar tempo de recuperação a doentes em estado muito grave) pode agora gabar-se dos “bons resultados” no combate à pandemia.

“Tivemos uma taxa de mortalidade cinco vezes inferior à da China, da Itália e de Manhattan”, comparou.

Um “mérito” que Roberto Roncon fez questão de partilhar com os portugueses que cumpriram as recomendações das autoridades de saúde, apesar da “inabilidade política” de algumas figuras.

“A sociedade e a Direção-Geral da Saúde tiveram mérito porque as pessoas ficaram em casa e não atingimos a saturação dos cuidados intensivos. Tivemos uma grande sobrecarga mas não tivemos o caos”, explicou.

“Criámos as condições para que o sistema imunitário do indivíduo conseguisse reagir à infeção. Isso parece fácil, mas é muito difícil. O grande esforço foi para manter a calma, a organização e fazer bem o que sabíamos fazer bem. (…) Parte do nosso plano foi não fazer o que foi feito na China e na Itália. Nós não queríamos o caos”, insistiu.

Tudo isto foi realizado “no meio de tantos pavões e autoridades de saúde”.

“Eu tinha colegas que diziam que não valia a pena colocar os doentes em ECMO, mas o que eu posso dizer é que tive 16 doentes com covid em ECMO e só morreram dois. Veja a diferença entre 90 por cento de mortalidade e 90 por cento de sobrevivência”, comentou.

Como coordenador no São João, Roberto Roncon terá sido o médico em Portugal que lidou com mais doentes com covid-19. E garantiu lembrar-se de todos os que morreram devido ao novo coronavírus. Neste ponto, o que mais custou foi a “solidão” dessas mortes.

“A solidão das mortes sem visitas foi uma violência. Um dos poucos consolos que temos é morrermos com a nossa família e isso não pôde acontecer. (…) Não se podia aligeirar uma coisa que mata, que dá cabo da economia. (…) As pessoas que ficaram em casa acabaram por sofrer mais porque ver o telejornal era um massacre”, finalizou.

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