Cultura

Realizador Manuel Pureza estreia-se no teatro com “Inimigos da Liberdade”

Três homens acorrentados, arrastando-se pelo deserto com uma pedra, repetindo uma tarefa sem perspetivas de a concluírem ou de a ela sobreviverem, dominam “Inimigos da Liberdade”, peça a estrear na quarta-feira, no Teatro da Trindade, em Lisboa.

“Inimigos da Liberdade – Peça para três escravos”, a representar na sala Estúdio do Trindade, é um texto de Manuel Pureza – que também o encena –, com o qual venceu a edição de 2018/2019 do prémio Miguel Rovisco Novos Textos Teatrais do teatro da Fundação Inatel, e assinala a estreia do realizador no trabalho para palco.

Carregar uma pedra gigante de um lado para o outro é a única função dos três homens, numa alusão ao mito de Sísifo. Mas quando a pedra encrava, deparam-se com o drama de quem, no meio de nenhures, fica a meio de uma tarefa sem perspetivas de a concluir, de lhe sobreviver ou de sequer equacionar por que motivo a desempenha. E é esse o momento de “Inimigos da Liberdade”.

A ação demonstra que insistem na tarefa, porque sempre o fizeram, porque não sabem fazer outra coisa. Todavia, a memória acaba por atraiçoar as personagens e a fadiga por as enganar, enquanto as dúvidas se vão instalando pouco a pouco. E a revelação vai acontecendo enquanto o deserto, que na peça se apresenta como manifestação do tempo, se impõe de forma cruel, com a repetição do nada.

O trabalho, a liberdade, o tempo são temas que atravessam o texto do realizador Manuel Pureza, e a condição de escravo vai ficando patente nas falas das personagens, quando dizem que “ser feliz [ou livre] tem de ser outra coisa”.

“Ser livre tem de ser outra coisa. Não pode ser isto”, diz, a determinada altura, um dos homens, ainda antes de todos se libertarem da pedra. E de ficarem sem saber o que fazer depois.

A peça resulta de uma ideia “antiga” de Manuel Pureza, confessou o próprio aos jornalistas, no final de um ensaio para a imprensa, a menos de uma semana da estreia, acrescentando que deixou de pensar nela, depois de a ter candidatado ao prémio Miguel Rovisco (dramaturgo e poeta português, Prémio Garrett 1986 e 1987, autor de mais de 20 títulos, como “Retrato de Uma Família Portuguesa”, falecido em 1987, aos 27 anos).

“Quando, por obra do acaso, passado quase um ano me cruzei com o Diogo [Infante, diretor artístico do Teatro da Trindade], para vir fazer uma produção e ele me disse parabéns, eu já não me lembrava, sinceramente já não me lembrava de quê. E fiquei surpreendido, claro que sim. E aterrorizado, evidentemente. Um bocadinho”, disse.

Escrita “de uma penada quase numa semana”, em que se fechou para a elaborar, a ideia para a peça tinha “quase uns bons sete anos, sem que a tivesse passado para o papel”, acrescentou Manuel Pureza.

“Fui juntando assim umas coisas e umas músicas e umas ideias e umas conversas, e depois acabei por escrevê-la”, disse o autor, sublinhando, porém, que agora a considera “incompleta”, o que resulta de uma “insatisfação constante” da sua parte.

Questionar o sistema perfeito, “que nos põe com medo de nós próprios”, foi o princípio que levou o realizador de televisão e de filmes, como “Linhas de Sangue” e “Teorias da Conspiração”, a escrever uma ideia que se foi reforçando desde que foi pai (o filho tem agora oito anos), disse.

“Os inimigos da liberdade somos nós próprios. Já nem sequer precisamos de ser policiados. Estes tipos são escravos de ninguém, são de eles próprios”, enfatizou.

Apeça nasce assim de questionar que “a ditadura perfeita é esta que não tem cara”, inquietação que considerou como um “legado familiar”, referiu, sendo filho do deputado do BE José Manuel Pureza.

“Há aqui uma coisa maior que é eu chegar a casa e dizer ‘ah vou cortar o meu dedo mindinho porque não preciso dele’. Eles disseram-me que não preciso, portanto eu se calhar não preciso'”, referiu.

“Hoje corto o mindinho, amanhã, se calhar, corto a mão e depois corto o braço. E vamos andando, porque tem de ser, e o trabalho não pode parar, e o ‘ranking’ nunca deixa de estar no horizonte – cumprir o objetivo de ser o número um, de quê não se percebe muito bem”, prosseguiu.

E exemplificou com o ‘ranking’ das escolas: “De quê, para quê? Para os ‘putos’ estudarem mais e serem fechados em caixas e pensarem de uma [determinada] maneira?”, argumentou. “E depois vamos dar [à inquietação e revolta de] Zé Mário [Branco]”.

Interpretada por João Craveiro, Cristóvão Campos e João Vicente”, “Inimigos da Liberdade – Peça para três escravos” tem cenografia de André Amoedo e Tomás Schiappa, figurinos de Mia Lourenço, desenho de luz de João Cachulo, desenho de som de João Cruz e é uma produção do Teatro da Trindade/Inatel.

A peça vai estar em cena a partir de quarta-feira, 27 de novembro, até 29 de dezembro, com espetáculos de quarta-feira a domingo, às 19:00.

Em destaque

Subir