Cultura

Mostra na Gulbenkian cruza trabalho de artistas sobre etnografia e colonialismo

Uma mostra de fotografias, filmes e tecidos feitos pela artista franco-marroquina Yto Barrada, que cruzam o trabalho da etnóloga francesa Thérèse Rivière com narrativas da sua própria família, vai estar patente, a partir de sexta-feira, na Gulbenkian, em Lisboa.

O título desta exposição sobre o legado colonial é “Moi je suis la langue et vous êtes les dents” (“Eu sou a língua e vós os dentes”), excerto de um dos cadernos de anotações de Thérèse Rivière, que estudou o povo berbere Chaouias nas montanhas do Aurès, na Argélia, entre 1934 e 1936, explicou aos jornalistas a curadora da mostra, Rita Fabiana.

Trata-se de um apontamento sobre “magia”, e esta frase, dita por uma anciã berbere aos homens da família, significa que ela “detém a língua e, portanto, tem o poder”, enquanto os dentes surgem como uma “referência ao ato de resistência”, conceitos associados à violência colonial e à transformação, acrescentou.

Ainda antes de entrar na sala onde está exposta a maioria das peças desta mostra, uma sequência de fotogramas sem título, que fazem parte da série bombons, surge como homenagem à artista plástica portuguesa Lourdes Castro e às suas colagens de pratas de bombons, de 1965.

Para este trabalho, Yto fotografou as pratas dos bombons que comeu instantes antes, numa simbologia que pretende traduzir a ideia de ir comendo e engolindo os bombons, e deixando as pratas que os embrulhavam, fixadas na imagem como “vazios”.

Outra peça “sem título” é um conjunto de slides, com imagens dos objetos recolhidos por Thérèse Rivière – que inclui fotografias, desenhos, cadernos de notas ou objetos etnográficos -, que estavam votados ao esquecimento e que Yto Barradas quis resgatar.

Na opinião de Yto Barrada, Thérèse Rivière era uma pessoa “incrível”, que deu voz e visibilidade à relação entre colonizados e colonizadores, entre mulheres e homens e a desigualdade que este tipo de relações impunha como condição natural, tendo ela própria sido vítima desta desigualdade.

Esta desigualdade contribuiu em França para a invisibilidade do trabalho da etnóloga, irmã do museólogo Georges Henri Rivière, explicou Yto, afirmando que todo o trabalho de Thérèse é “uma descoberta”.

Duas fotografias em grande formato, ocupando parte de uma parede da sala e pertencentes à série “The telephone books”, são imagens (ampliadas) do interior de pequeninos cadernos de telefone da avó materna de Yto, iletrada, que criou códigos e um sistema gráfico, desenhados nas folhas a lápis, para identificar os contactos familiares, explicou a artista, acrescentando que estes caderninhos foram a única coisa que herdou da avó.

O conjunto inclui também um filme de 14 minutos – “Hand-me-downs – que remete para as roupas que passam de irmãos para irmãos, sendo que aqui a ideia é a de passar de geração para geração as histórias familiares, afirmou Rita Fabiana.

O filme conta a história da sua família no feminino, narrada por Yto, a partir do relato biográfico da mãe, desde o seu nascimento em Marrocos até à sua juventude em Paris.

A curadora da mostra segue para outra obra, que consiste num grande jogo de construção sem cor, no qual Yto volta a homenagear Thérèse e simultaneamente a resistência poética.

Trata-se de uma peça que está “muito ligada à resistência argelina, por causa das ruas intrincadas, sitio ideal para a resistência”, explicou Rita Fabiana.

“A dimensão que mais me interessa em Thérèse é a feminista e de etnógrafa. Poucas mulheres foram tão longe, porque eram mulheres”, afirmou Yto.

A artista afirma-se também como uma “coletora de tecidos” e isso vê-se num conjunto de quadros que ocupam uma parede inteira, com têxteis tingidos com plantas através de processos históricos e naturais.

No final há um filme de cerca de meia hora, que é um relato biográfico da mãe nos seus anos de estudante socialista, durante uma viagem de descoberta pessoal pelos Estados Unidos da América.

As imagens do filme não documentam, mas dão a ver em movimento constante o fazer e o desfazer de jogos educativos de encaixe.

A exposição vai estar patente no Espaço Projeto do edifício da Coleção Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian (Centro de Arte Moderna), até ao dia 06 de maio, e marca a abertura de um ciclo com três artistas de geografias distintas, com trabalhos ancorados na história e no legado do colonialismo e nos processos de descolonização das narrativas, dos saberes e da imaginação.

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