Cultura

João Reis regressa à encenação com ‘Neva’ de Guillermo Calderón

© João Tuna

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Texto multipremiado do dramaturgo chileno aborda o papel do teatro e as suas limitações, em contraponto com a realidade da violência política

Em janeiro de 1905 a cidade de São Petersburgo assistiu a um ‘Domingo Sangrento’. Centenas de trabalhadores russos marcham em direção ao palácio de Inverno do Czar, manifestando-se contra uma crise social e económica profunda.

Os guardas foram impiedosos, disparando contra os manifestantes. Um momento crucial da história da Rússia que Lenine haveria de apelidar de “ensaio geral” para a Revolução de 1917.

É neste dia e contexto histórico que se situa temporalmente ‘Neva’, texto escrito pelo dramaturgo chileno Guillermo Calderón e que João Reis estreia, enquanto encenador, na quinta-feira, 29 de outubro, no palco do Teatro Carlos Alberto, no Porto.

Em ‘Neva’, duas atrizes e um ator fecham-se num teatro para ensaiar O Cerejal, de Tchékhov. Olga Knipper (Lígia Roque), atriz do Teatro de Arte de Moscovo dirigido por Stanislavski e viúva do dramaturgo russo, que morreu de tuberculose há apenas seis meses, e dois jovens da companhia que conseguiram chegar ao ensaio Aleko (Cristovão Campos) e Masha (Sara Barros Leitão).

Os restantes elementos do elenco não aparecem. Talvez se tenham juntado à marcha dos trabalhadores ou tenham sido intercetados pelos guardas do Czar. O ensaio continua entre conversas ébrias que abordam o teatro e a política e apontam um caminho para a Rússia que passará por uma revolução.

O texto aborda de forma sarcástica o papel do teatro e faz o contraponto entre o “mundo” da sala de ensaios e a realidade da violência política.

Não deveriam os três atores juntar-se à manifestação, em vez de se resguardarem? Qual a utilidade do teatro? “Para quê perder tempo a fazer isto?”, pergunta Masha na cena final.

Guillermo Calderón é claro neste esforço do teatro para sair das quatro paredes da vida doméstica: “Talvez o teatro não sirva para nada, mas pelo menos serve para nos juntarmos com outras pessoas e esperar por um momento de lucidez. Um momento que nos retire das quatro paredes e nos dê um lugar na história”.

Falamos da Rússia, mas ‘Neva’ é sobre o Chile

Protagonista de algumas das mais memoráveis produções do Teatro Nacional São João, João Reis regressa à encenação.

Cruzou-se com o texto de ‘Neva’ há dois anos, vendo no título algo de mais simbólico do que apenas o nome do rio que atravessa São Petersburgo.

Uns meses mais tarde, ao ler uma entrevista de Calderón, descodificou o real significado, com o dramaturgo a referir que cresceu a ouvir a mãe contar que, depois do golpe militar no Chile, havia corpos a boiar no rio.

“Ao invés de lhe sugerir a passagem do tempo e a fonte da vida, o rio passou a representar um cemitério ambulante”, refere João Reis.

“’Neva’ é uma peça sobre o Chile”, assume Calderón. “Escrevi Neva porque os últimos quarenta anos da história do Chile foram definidos pela revolução falhada do governo socialista de Salvador Allende.

Depois do golpe de Estado de 1973, os corpos também flutuaram por um rio, o rio Mapocho, no centro de Santiago. A partir desse momento, refugiámo-nos numa vida doméstica, enquanto lá fora acontecia tudo o que acontece numa guerra”, refere.

O espetáculo, que conta com cenários e figurinos concebidos por Nuno Carinhas, diretor artístico do TNSJ, resulta de uma coprodução entre Teatro Nacional São João e O Lince Viaja. A peça está em cena até 15 de novembro, às quartas-feiras, às 19h00, de quinta a sábado, às 21h00, e aos domingos às 16h00. O preço dos bilhetes é de 10 euros.

A temporada no São Luiz Teatro Municipal, em Lisboa, decorre de 26 a 29 de novembro.

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