Cultura

‘História do Crime’. Como a Priberam criou um ‘dicionário’ às avessas

Linguistic Ground Zero, o novo projeto do artista João Louro para o Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia (MAAT) , que é inaugurado hoje, anuncia-se como uma reflexão “sobre o momento de inflexão histórico no qual arte e sociedade parecem estar de acordo com a necessidade de acabar com tudo”: as duas Grandes Guerras mundiais e as vanguardas artísticas.

A proposta de João Louro inclui uma reprodução de “Little Boy” – a primeira bomba atómica da História, que arrasou a cidade japonesa de Hiroxima em 6 de agosto de 1945. Como acontece com a maioria das bombas, nas quais os soldados escrevem mensagens, esta reprodução também transporta consigo inscrições – neste caso, os textos fazem referência à arte, à política, à cultura e às vanguardas. Mas o projeto inclui também uma peça única e inédita: um volume de 1986 páginas, com 100 mil vocábulos e 185 gravuras, a que o artista chamou “História do Crime”, e que é um dicionário des(cons)truído, cujos vocábulos, retirados do Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, ganham significados inéditos, trocados aleatoriamente por um algoritmo.

Pedro Mendes, linguista da Priberam, explica que a participação da empresa como cúmplice do João Louro neste projeto começou por um convite que despertou o interesse da Priberam pela possibilidade de associar os seus recursos ao projeto de um artista cujo trabalho está desde há muito ligado à exploração da palavra escrita.

Assim, e como se pode ler na nota introdutória da História do Crime, “partindo da ideia do artista, e com base no Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, este novo dicionário cria um surpreendente e imprevisível mundo novo, por vezes admirável, outras nem tanto, arbitrariamente baralhando significantes e significados e usando a tradição lexicográfica como ponto de partida para criar um léxico ficcionado, capaz de refazer o universo.”

Um dicionário para quem tem sentido de humor

Pedro Mendes reconhece que o resultado “é o sonho de qualquer lexicógrafo ou consulente com algum sentido de humor – e talvez o pior pesadelo para a maior parte dos autores de dicionários que fazem parte da história da dicionarística portuguesa e brasileira.”, sendo um projeto apenas realizável de modo prático e totalmente aleatório com recurso às tecnologias disponíveis atualmente.

Tal como para qualquer obra dicionarística, foi necessário definir alguns critérios. Relativamente à macroestrutura, a Priberam decidiu limitar a nomenclatura apenas a adjetivos, substantivos e verbos, o que resultou em perto de 103 000 entradas. No que toca à microestrutura, foram retirados todos os exemplos, locuções e outros elementos periféricos do verbete. Todo o conteúdo desta obra segue a grafia do português europeu segundo o Acordo Ortográfico de 1990.

A troca de definições foi realizada de modo completamente automático e aleatório, pelo que a eventual existência de combinações que possam ser consideradas impróprias ou ofensivas é da inteira responsabilidade do algoritmo e inerente à natureza de um projeto deste tipo.

Conclui Pedro Mendes: “no caso de dúvidas em relação a alguma das palavras utilizadas nesta nota introdutória, apresentamos duas opções: pesquisar o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa online, cujas definições se aproximam mais da ordem estabelecida das coisas, ou consultar a História do Crime para uma versão paralela e alternativa. Cabe ao leitor decidir por uma delas ou, se preferir, conjugar o melhor de dois mundos”.

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