Cultura

Espetáculo “Bonecas” cruza violência, a escrita de Afonso Cruz e a pintura de Paula Rego

Um conto inédito de Afonso Cruz e o universo da pintora Paula Rego foram a inspiração para a peça “Bonecas”, com direção artística de Ana Luena e José Miguel Soares, que se estreia na quinta-feira, no Porto.

De 11 a 21 deste mês, o Teatro Carlos Alberto, no Porto, recebe a exploração “por territórios femininos em que há poder e submissão”, que teve um “trabalho de investigação criativa” com um grupo de raparigas menores, num centro de acolhimento temporário, e também com um grupo de mulheres vítimas de violência doméstica.

Segundo a encenadora, Ana Luena, o escritor Afonso Cruz apresentou-lhes a história de Sãozinha, a personagem, uma rapariga que foi “largada pelo pai no Lazareto, nos anos 1940/1950, que, no fundo, era um instituição onde se formavam raparigas para serem criadas em casa de famílias abastadas”, em que desempenhavam várias funções.

“A partir dessa historia e do universo da Paula Rego – que trabalha também estes universos femininos, e toda esta historia é no contexto feminino de violência –, sabemos que neste tipo de instituições há dinâmicas que se criam entre as pessoas que não são irmãs de sangue, mas acaba por acontecer este tipo de relações de poder, submissão e violência entre elas”, afirmou.

E aí entrou o trabalho de investigação criativa com os dois grupos, em que houve a possibilidade de perceber essas tensões, apesar de ser num tempo diferente do texto, primeiro com um trabalho fotográfico, com as raparigas do centro de acolhimento, enquanto que, com as vítimas de violência doméstica, houve um trabalho performativo.

“Isto começou no ano passado. Já em abril, fizemos uma residência na qual lemos o texto de Afonso Cruz, surgiram questões que já tínhamos estado a trabalhar com as raparigas e as mulheres, mas também no universo da Paula Rego. Há muita coisa que se toca, não é forçado. No processo de ensaios, escrevi o texto que parte do texto do Afonso, mas que acaba por o abraçar”, explicou sobre a criadora.

Ana Luena acrescentou ainda que procurou fazer uma “história maior, que faz a ligação com a atualidade universal”, uma peça focada no universo feminino, com uma grande linguagem física que parte do trabalho de improvisação desenvolvido com as atrizes, para construir cenas.

“Faço uma primeira parte do trabalho em que não há texto, há diretrizes minhas que proponho, de relação ou de conflito ou coisas do próprio texto que até pode não ser usado no espetáculo e elas fazem improvisações. Como não têm texto, a resposta é muito mais física e é a relação delas com o espaço ou delas com elas próprios. Este universo remete muito para a questão do corpo”, referiu.

Esta é uma história que pretende fugir a “maniqueísmo, interpretações fáceis ou lineares”, segundo José Miguel Soares. É uma tentativa de “olhar para o monstro que há no outro”, ao mesmo tempo que se olha para “o monstro que há em nós”.

“O projeto ‘Bonecas’ não cresce com uma raiz, tronco e copa, interessa-nos mais os pontos de fuga. Estes trabalhos – com o centro de acolhimento e com as vítimas de violência doméstica – não foram planificados desde o início. Encontrámos a resposta social equivalente ao que se fazia nos anos [de 19]60 para problemáticas diferentes, mas semelhantes”, apontou.

A interpretação de Mariana Magalhães, Matilde Magalhães, Nádia Yracema e Susana Sá, oferece a visão “multifacetada” que Ana Luena pretende, de um tema “tão forte” que se continua “constantemente a ver”, embora haja a preocupação de não querer definir “um alvo”.

“Fala-se de escravos no passado, mas continua a haver escravos que estão no meio de nós e alguns podemos ser nós. O sofrimento tem camadas muito distintas. Alguém pode sofrer por razões incomparáveis com situações de extremos, mas isso não quer dizer que essa pessoa não sofra. Esta ligação como se fosse uma espécie de um inconsciente coletivo”, indicou.

A encenadora explanou ainda que “o mais importante era a ideia da escravatura”, vinda do texto, das mulheres que estavam ali “a ser educadas com um objetivo e ainda achavam que tinham [a] sorte de serem escolhidas”, sendo esta uma “peça aberta” com uma pequena história.

“Há uma fusão entre a realidade e a ficção, não sabemos onde começa uma e acaba a outra, as questões das autorias também, é como se tivéssemos roubado o texto do Afonso [Cruz] e usá-lo para outra história que não a dele. Isso acaba por estar no próprio espetáculo. É uma viagem por este universo e não tanto um principio, meio e fim”, finalizou.

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