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Entrevista Tony Carreira a Goucha: “Resta-me acreditar que o caminho que me resta não será tão longo”

Entrevista do cantor a Manuel Luís Goucha é um testemunho arrepiante, é a dor em palavras e na imagem de um olhar vazio. Tony Carreira quer reencontrar a filha Sara, numa outra vida, e faz tudo para ser uma pessoa melhor, agarrado aos dois filhos e à fé.  

A entrevista de Tony Carreira a Manuel Luís Goucha, emitida na TVI, nesta segunda-feira, é um relato impressionante, nas palavras, nos gestos, na fragilidade de quem vê cair o mundo, no olhar com dor perpetuada, na lição que nos transmite. “Se alguém me apoiou muito neste deserto foste tu. Foste muito especial, por isso estou aqui”, diz Carreira, na primeira frase, dirigida a Manuel Luís Goucha, que pergunta se a vida tem sentido depois da perda de uma filha. 

“Não, claramente não. E eu estou a tentar encontrar um sentido. É muito complicado responder a essa pergunta, porque tenho mais dois filhos. E eles percebem, quando o meu discurso é tão negativo como este, que é a dor que está a falar. Claro que a vida vai ter de ter sentido. Tenho mais dois rapazes e tenho de me agarrar a eles”, responde o pai de Sara.  

E o seguimento da resposta, mais do que um relato nestes meses de sofrimento, é mais uma prova de amor: “Eu já não conto. Digo isto porque já deixei de pensar em mim. Através da associação da minha filha espero encontrar sentido. Estou à espera de respostas, à espera de perceber o porquê de a vida ser tão injusta, e estou a tentar procurar caminhos. Confesso que quando a minha filha partiu foi uma violência extrema”

“Morri por dentro e ainda estou a tentar encontrar alguma vida cá dentro. Não tenho problemas em dizer que bebi mais do que bebia. Parecia um zombie. Fui injusto com algumas pessoas que amo muito, fui agressivo com o mundo inteiro… Neste momento, estou à procura, com a fé que me resta, de encontrar algumas respostas. Como acreditava na vida depois da morte, hoje tento agarrar-me a essa esperança. Agarro-me à esperança. Dá-me jeito acreditar que há vida depois da morte. Comecei a ler muito. Ainda tenho um caminho a percorrer e acho que o que me tirou toda esta agressividade e revolta foi eu pensar que tenho de ser tão generoso, tornar-me ainda melhor. Se há qualquer coisa para lá disso [vida depois da morte] será nos anos que me restam que eu terei mais possibilidades de reencontrar a minha filha. É um objetivo, hoje”, acrescenta.  

“Nada mata a dor, a falta que ela me faz”. 

Tony Carreira já cumpriu o estado de revolta, da negação, e vive consciente das certezas. Revela que não tem – nunca teve – intenção de viver até aos 100 anos. Mas diz também que lhe resta acreditar que o tempo que lhe resta não é longo. 

“A revolta já foi. Não me leva a lado algum, não vai mudar nada. Há duas certezas: uma delas é que nunca mais volto a ver a minha vida e a outa certeza é que nunca mais serei o mesmo. Voltar a ver a minha filha cá terminou. Sei perfeitamente. Tenho de me resignar com esse facto. Isso é um facto. A única coisa que me pode ajudar é agarrar-me à associação da minha filha, fazer o bem e acreditar que ela me está a ver. Resta-me acreditar que o caminho que me resta não será tão longo, cá”, afirma.  

“Não sei se o meu caminho é longo. Não tenho voto na matéria nisso. Gostava que não fosse longo”. 

No entanto, prossegue, “isso já tem que ver com coisas que eu dizia antigamente”. “Nunca tive nenhuma vontade de ser um idoso… Há pessoas que festejam os 100 anos – e eu gostava de pensar assim. Eu nunca tive essa [palavra impercetível] de festejar os 100 anos, nunca tive. E se eu chegar aos 100 anos será um grande castigo. Sou completamente contra – e fico triste quando isso acontece – terminar com a própria vida. Não posso dizer que desta água não beberei. Mas jamais o farei. Nunca pensei nisso, depois desta perda. Não é o caminho de encontrar alguém do outro lado. Mas hei de ir para outro lado não muito idoso”, reforça.  

“A noite é terrível. Mas pior é o acordar. O acordar é acordar na minha casa, porque pouco saio daqui, é acordar sem saber onde estou, que dia é, é um vazio total. O adormecer é a chorar, agarrado a uma almofada. O acordar é um vazio total”.

A crença em Deus mudou? “Tenho a minha fé, à minha maneira. Sempre disse que a minha fé era ter a noção do que era o bem e o mal. Se eu acreditava em Deus, por tudo o que vi acontecer na minha vida de 57 anos, os 10 primeiros foram um bocadinho às cegas, mas pelo menos em 47 anos já via bem. Tive muitas dúvidas e hoje não quero questionar. Quero acreditar que existe e quero acreditar que ela está num sítio especial”, responde.  

“Fui um superpai com a Sara. Eu anulava-me para ela. Fiz tanta coisa com a minha filha. E ainda bem. Se disse muita vez que a amava… E continuo a dizer. Vou todos os dias ao cemitério. Só se não estiver em Portugal. Até ter outras respostas que procuro, é ali que ela está. É o único sítio onde sei que ela está. É ali que falo com ela. Faço-lhe muitas perguntas. E espero sentir as respostas no coração”.

A Sara era “a luz, era a princesa, a mulher da minha vida”. “Nunca a vi a falar mal de ninguém, a não querer ajudar alguém. A Sara foi o equilíbrio na minha separação, por exemplo. A Sara é um ser especial e quem a conheceu sabe disso. Muita gente pode pensar que eu digo isto porque perdi a filha e aconteceu esta tragédia, mas quem a conheceu sabe que não tem que ver com isso. A Sara era uma pessoa especial, na minha vida e nas pessoas que a conheceram. Era um anjo, uma pessoa especial”, afirma.  

Tony Carreira agradece a diversas pessoas “maravilhosas”, ao longo deste drama de cinco meses.

“Posso dizer que há pessoas de quem não esperava nada e tive muito e outras de quem esperava muito e não tive nada. Mas não há espaço para mais nada. Quero estar bem com o mundo inteiro. Estou bem comigo. A pessoa com quem fiz mais coisas foi com a minha filha. Tenho milhões de recordações da Sara e isso deixa-me feliz. E contar os momentos que tive com ela deixa-me feliz”.  

O cantor fala da associação da sua filha, que será a sua prioridade: “A associação será nesse sentido, para ajudar pessoas que precisam. Vamos começar por 21 crianças, que vamos acompanhar, mas não será só nas artes. Se um miúdo quiser ser advogado, agricultor, nós também vamos ajudar. Um ‘padrinho’ compromete-se a seguir o percurso da criança. Se nesta associação tivermos a honra de termos um primeiro-ministro, um grande médico, um grande jogador de futebol, a missão será cumprida. Quero acreditar que a Sara nos esteja a ver fazer isto em nome dela”. 

Sobre o acidente, o cantor lamenta que o processo se arraste na justiça. “Aproveito para lamentar que ao fim de cinco meses, ainda não há conclusões de nada. E estão a dizer-me que talvez a partir de agosto consigam dizer alguma coisa. Acho isso, no limite, desumano. A covid-19 serve de desculpa para tudo. E falo em nome de qualquer pai que tenha passado por isto”.

De positivo, “o carinho dos portugueses”: “Não tenho palavras. O carinho da minha classe artística também. Tive surpresas bonitas. Mas o julgamento é difícil. Há pessoas que considero que já falharam comigo. Mas eu, certamente, já falhei com outras pessoas. Ninguém perfeito. O julgamento é difícil”.  

A perda da filha levou Toni Carreira a pensar em diversas questões, para além da tristeza eterna que ficará em si. “A tristeza pode transformar uma pessoa em alguém horrível, ou uma pessoa melhor. No meu caso espero que seja numa pessoa melhor”, refere. 

O cantor espera agora regressar aos palcos. “Já pedi ao meu agente que me marque o maior número de espetáculos possível. Só em agosto, em França, temos mais de 25 concertos agendados. Em Portugal, são mais de 40. Espero andar a cantar pelo mundo inteiro. Preciso de cantar, preciso de não ter tempo para pensar. E na música sinto-me feliz”, refere.

“Hoje sou outro homem, muito para lá de magoado. Sou alguém com uma ferida sem cura. Mas sou um homem obrigatoriamente melhor. Obrigado a todos os portugueses”, diz Tony Carreira, a terminar a conversa, necessariamente emotiva, com um abraço a Manuel Luís Goucha.

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