Aconselha o seu filho ou filha a não ter intimidade com estranhos, certo? Então, porque o obriga a dar um beijo a um seu conhecido, que é desconhecido dele? Elena Domínguez, psicóloga e especialista em inteligência emocional, defende que não devemos coagir as crianças a este tipo de intimidade, quando os apresentamos a alguém.
É um hábito comum dos pais: quando apresentam um amigo seu aos filhos menores, exigem que estes deem um beijo.
Mas será que devemos coagir as crianças a adotar um comportamento que pode ferir a sua intimidade?
A Maria tem somente 4 anos e a mãe, orgulhosa, apresenta-a a um colega de trabalho. “Dá um beijinho ao João”, insiste a mãe, perante a resistência da menor, que acaba por beijar, contrariada.
Este episódio, simulado, acontece vezes sem fim, sem que os pais percebam que podem estar a incorrer num erro.
A questão foi levantada pela escritora colombiana Ana Hanssen e aprofundada pela psicóloga Elena Domínguez, especialista em inteligência emocional.
A pergunta: devemos ou não pedir (exigir, na realidade) aos nossos filhos que beijem uma pessoa que é da nossa confiança, mas que, aos olhos dos menores, é um desconhecido (tão desconhecido como aquela pessoa abstrata com a qual não queremos que ele conceda confiança)?
Ana Hanssen aponta diversos motivos para não coagirmos as crianças a beijar. Desde logo o respeito pela opção da criança: deve ser ela a decidir de que forma pretende mostrar afeto.
Em segundo lugar, salienta a escritora, um beijo é uma intimidade que as crianças concedem a um grupo restrito de pessoas – pais, avós, irmãos e apenas alguns familiares.
A escritora colombiana aponta uma terceira razão, mais polémica. Segundo salienta, há estudos que comprovam que as crianças obrigadas a beijar estão mais propensas a abusos sexuais. Mas deixemos esta polémica de fora desta análise, para que a reflexão não se desvie do essencial.
A psicóloga Elena Domínguez foi confrontada com estas teses de Ana Hanssen e – em declarações ao jornal espanhol El País, reproduzidas pelo Diário de Notícias – argumenta que “não se deve coagir as crianças a darem beijos a estranhos”.
“Isso é forçá-las a superarem uma barreira natural que mantêm com o desconhecido e que as protege dos perigos”, defende Domínguez.
A criança pode sentir, por outro lado, que os estranhos conseguem exercer um poder sobre o seu corpo e sobre a sua intimidade.
Como devemos agir?
Quer Ana Hanssen, quer Elena Domínguez apontam no sentido mais óbvio: deixar que seja a criança a decidir de que forma cumprimenta a pessoa que, afinal de contas, é um estranho.
Apologista de uma “cultura de proximidade”, o psicólogo Tiago Sá Balão foi convidado a abordar esta temática. “Devemos obrigar o nosso filho a cumprimentar com um beijo?”, perguntámos.
“Considero que não devemos obrigar, mas podemos educar. Obrigar ou impor é colar no outro uma ideia própria ou apropriada e não considerar, nem respeitar, a sua vontade, transformando-o num ser submisso, passivo – e, nalguns casos, amedrontado – e a nós nuns comunicadores de sentido único, enquanto educar verdadeiramente exige que ajamos como bons exemplos e permite-nos refletir e criar conjuntamente modelos que ajudem os nossos filhos a decidir por eles próprios”, começa por dizer.
Tiago Sá Balão – que recentemente lançou o livro ‘Sentimento de Pertença’, onde aborda as relações interpessoais – acredita numa educação “para os afetos, para os relacionamentos, recheados de boa saúde, e para valores e gestos que protegem a nossa união aos outros, e não o enraizamento de desconfiança, distanciamento, frieza, entre outros”.
“Considero o beijo, tal como o abraço, um alimento, não calórico, que nutre a paixão pela vida e que educa para os afetos. Em contexto de consulta, no exercício da minha profissão de psicólogo clínico, dizem-me, muitas vezes, jovens e adultos, o seguinte: ‘Gostaria de poder abraçá-lo(a), dar-lhe um beijo, estar perto dele(a), mas não consigo… e gostaria de conseguir’”, salienta.
Estas barreiras, em parte, “provêm de exemplos parentais de envolvimentos à distância – tu estás aí, eu aqui e ele ali, cada qual no seu espaço –, com ausência ou medo da intimidade, do contacto, da proximidade, do toque”.
Desse modo, considera que “não é o ato de dar o beijo que se deve questionar, mas sim as bases relacionais e afetivas que construímos com os nossos filhos, a bússola que os ajudamos a criar para conviverem com os outros”.
“A partir daí, se soubermos educar para os afetos e para os relacionamentos interpessoais, o beijo passará a ser um cumprimento de respeito pelo outro (tal como um cumprimento de mão com firmeza, um ‘murro contra murro’, um abraço, um ‘dá-me cá cinco’) e não um problema para a saúde pública ou um impedimento para uma vida adulta (e de criança) segura e feliz com as outras pessoas conhecidas, menos conhecidas e desconhecidas”, salienta.
Há uma diferença entre “ferir a intimidade”e quebrar barreiras. “Respeitemos a vontade e o espaço íntimo de cada um (também o adulto tem que perceber se a criança quer dar e/ou receber um beijo e respeitar a sua vontade – e não agarrá-la à força e inundá-la de beijos, por parte do conhecido dos pais, ou obrigá-la a beijar, por parte dos próprios pais), mas procuremos transformar a vida dos outros com pequenos gestos que aproximem as pessoas”, conclui Tiago Sá Balão.
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