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Couto Misto – A Micronação Ibérica Esquecida pela História

A educação dos nossos pais/avós (ou outros familiares e amigos) e a sociedade de que fazemos parte ensinam-nos a confiar nas pessoas e instituições que nos rodeiam. Mas e se vos disser que os livros de história ignoram há décadas uma parte importante da história ibérica? Acreditam? Não? Mas deviam. Esta crónica é sobre Couto Misto, a micronação tristemente esquecida pela história. Tudo o que vai ler nesta crónica vai parecer de loucos, uma ilusão, uma fantasia saída da mente de um qualquer escritor de ficção mundialmente conhecido, contudo é a mais pura das verdades. Este é o momento de fazer justiça, e dar o devido tempo de antena, a Couto Misto!

Durante séculos existiu uma pequena república na fronteira dos reinos de Portugal e Espanha. Ousava ter autonomia, instituições próprias e uma liberdade difícil de imaginar a esta distância tendo em conta o conhecimento que temos da nossa história. Couto Misto foi, até há 135 anos, um Estado independente. Hoje parte é portuguesa (Trás-os-Montes) e outra é espanhola (Galiza). Podia facilmente ter sido uma espécie de Andorra, San Marino ou mesmo Mónaco, contudo optou por se dividir e ceder aos ímpetos conquistadores dos seus “vizinhos”. Infelizmente hoje não passa de um vale desolado onde existem um punhado de aldeias e um segredo fechado a três chaves.

O Vale do rio Salas é tão profundo que mesmo em pleno Verão as horas de sol são escassas (sendo que esta realidade é particularmente difícil de imaginar para um país cuja imagem de marca é o sol e o calor…). As paisagens são simultaneamente agrestes e fascinantes. Provocam tanto receio quanto fascínio por uma população suficientemente corajosa para ali estabelecer a sua vida. Falamos de encostas tão húmidas, impenetráveis e íngremes que apenas os lobos, as cabras selvagens e um ou outro pastor, mais aventureiro, consegue percorrer na totalidade.

Couto Misto tem, nada mais nada menos, do que 27 quilómetros quadrados. O melhor sítio para os observar na totalidade é do nosso lado da fronteira, numas escarpas entre Tourém e Pitões das Júnias, no concelho de Montalegre. E embora estejamos em Portugal quase tudo o que avistamos é galego. Contudo, até 1864, esta terra não pertencia nem a uns, nem a outros.

Três aldeias da Galiza: Rubiás, Santiago e Meaus. Duzentos e poucos habitantes no total. Um café e quatro igrejas. Entre tudo isto há um pedaço de solo português: não é mais do que um declive da Serra do Gerês (no alto do qual foi instalado um parque eólico). Na sua essência o Couto Misto é exactamente isto, todavia foi durante séculos uma república independente. As coroas portuguesa e espanhola admitiam desde a Idade Média privilégios excepcionais aos habitantes destes vales parados no tempo. Porém, no Século XIX, as populações votaram em referendo a que reino queriam pertencer. Uma escolha tinha de ser feita. Podiam ser portugueses, mas também podiam ser espanhóis. A escolha era deles. Estava para breve o fim da independência.

Desde então que o vale do Salas foi-se esvaziando. Hoje é uma terra profundamente envelhecida, irrelevante a nível comercial, com pastos abandonados e casas em avançado estado de degradação.

A imprensa nunca se interessou verdadeiramente por Couto Misto. Raras foram as vezes que um jornal nacional ou uma cadeia de televisão ousaram percorrer tão agrestes vales. Poucas são as reportagens sobre a história deste local e das suas gentes. Mas existem excepções. Numa dessas excepções ouviram o senhor Rodriguez Alvarez, de 79 anos de idade. Afirmou o sábio pastor: “Desde miúdo até ter barba rija a aldeia sempre teve bem mais do que trezentas vacas. Pois bem, hoje são sete.” A frase é curta e o vocabulário é simples. Mas é o suficiente para perceber como tem sido a vida em Couto Misto.

Para nossa sorte ainda há idosos que se lembram de ouvir os respectivos pais, e avós, contarem histórias mirabolantes sobre esta curiosa terra. Dos criminosos que ali buscavam esconderijo da justiça peninsular, aos homens de fora que ali procuravam noivas (para poderem firmar raízes num dos vales esquecidos pelos próprios deuses). Dos terrenos arados em conjunto por toda a população ao do gado pastoreado por uma casa de cada vez. Dos Conselhos de homens ás das eleições dos três juízes (um por aldeia). Do castelo, que esteve na origem do Couto, que desapareceu para sempre (sem que ninguém consiga adivinhar-lhe a localização) à arca fechada a três chaves e onde residiam as leis daquela república. Este é um património de incalculável valor que corre o sério risco de ser perdido para sempre. E tudo porque dois gigantescos países escolhem ignorar parte da sua história. Será justo votarmos esta terra, as suas gentes e os seus hábitos e tradições ao esquecimento?

Mas nem tudo está perdido. A memória de Couto Misto foi investigada pela universidade de La Coruña e pela universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro. Graças ao esforço dos historiadores os limites do terreno estão demarcados, existem placas sinaléticas a orientar os turistas pelo “caminho privilegiado” (por onde os comerciantes, e criminosos, podiam passar sem ser incomodados por nenhum dos reinos), e existe até uma estátua do último juiz de Santiago. Porém muitas das placas estão caídas ou tão deterioradas que se torna impossível percebê-las (sendo que neste caso específico as duras condições climatéricas têm parte da responsabilidade). Couto Misto é cada vez mais uma memória perdida no tempo.

A igreja paroquial de Santiago impressiona pela sua beleza e pelos tons dourados. Mas o que é verdadeiramente surpreendente é que, galgando o púlpito e contornando o altar, se encontra uma escadaria (invisível aos olhos dos fiéis) que desce até uma câmara escondida no subsolo. Nessa cave, num espaço mal iluminado, existe uma relíquia: uma arca antiga, de madeira de carvalho e com três fechaduras.

Dentro dessa arca estão reunidos os principais documentos que garantiram, durante séculos, a autonomia ao Couto Misto: nomeadamente as cartas dos reis de Portugal e Espanha e as actas de todas as resoluções tomadas pelos juízes da lei (os representantes eleitos de cada aldeia e governadores do Couto Misto). Esse cargo continua a existir hoje em dia, embora possua apenas um papel meramente simbólico. Mas, tal como no passado, cada um dos três homens tem em seu poder uma das chaves que abrem a arca. Só as três chaves juntas conseguem abrir o baú. Ou seja? Nenhuma resolução era tomada se não fosse por unanimidade.

Nas aldeias de Couto Misto ainda há várias casas com um P, um E ou um X, esculpido na pedra, por cima da porta. As famílias decidiam se queriam ter nacionalidade portuguesa, espanhola ou mista (mixta, em galego) de uma maneira muito simples: no dia do casamento, o homem tinha de fazer um brinde a um dos reis, diante de todos os vizinhos. A maioria, no entanto, não brindava e marcava o X na parede. Porquê? Simples: em caso de delito seriam sempre julgados pelos três juízes do Couto. Simples e engenhoso.

Entre Meaus e Santiago há um enorme paul, a que toda a gente chama “a veiga”. Foi ali que o povo do Couto Misto votou a integração na coroa espanhola, em 1864. O referendo foi cumprido segundo as leis do Couto: um voto por família, de cajado no ar. Muitos queriam ficar do lado português mas desde logo ficou decidido que as três aldeias deveriam de permanecer juntas, para preservar a sua história e identidade. Feitas as contas apenas uma das aldeias escolheu pertencer a Portugal.

Viajemos novamente no tempo: o terramoto de Lisboa destruiu os arquivos da fundação do Couto Misto e os primeiros relatos escritos datam do século XIII. Estas eram as terras da Piconha e incluíam as três aldeias do Couto, mais Tourém e um castelo construído no Gerês, (cuja localização exacta, como já foi referido, permanece uma incógnita). Sabemos também que D. Manuel I mandou reconstruir a fortaleza em 1515 e que, três anos mais tarde, as populações de Rubiás, Santiago e Meaus se revoltaram contra o governador local, António Araújo, por causa da imposição do imposto no “caminho privilegiado”. O corregedor de Riba Côa, António Correia, e o alcaide-mor da Galiza, José Escalante, condenaram o governador português do castelo da Piconha e também o espanhol do Vale do Salas, e acordaram que, a partir desse momento, o povo misto teria o direito a privilégios de autonomia para não ser vítima de novos abusos e injustiças.

Até ao século XIX, a pequena república de pastores manteria as suas regras medievais inalteradas. Porém, em 1810, a Junta de Armamento do Reino da Galiza recebeu uma carta do prior de Celanova (que está guardada no Arquivo Histórico da Província de Ourense) acusando o território do Couto Misto de acolher um “número infindável de moços fugidos à tropa e de criminosos de toda a espécie”. Ora essa queixa desencadeou o processo que levaria ao fim do Couto Misto, com a assinatura do Tratado de Lisboa, em 1864.

Porque razão tudo isto permanece nos escombros da história portuguesa e espanhola? Porque razão a história da península ibérica se resume a Portugal e Espanha quando estes bravos cidadãos tanto lutaram pela sua própria independência? Couto Misto é uma república esquecida, no fundo uma Andorra que nunca o chegou a ser. Hoje em dia a independência não faz qualquer sentido. Mas sabem o que faz sentido? A sua história, as suas tradições, os contos populares e as memórias daquelas terras de pastores humildes mas bravos.

Numa era em que tudo parece inventado e descoberto não deixa de ser refrescante perceber que afinal ainda temos um longo caminho a percorrer. Ainda há muito para descobrir, aprender e perceber. Teremos de viver muitas vidas para chegar aos calcanhares daqueles corajosos cidadãos que perceberam (muito antes de nós) o quão valiosa e inestimável é a liberdade e a independência.

Vocês não sei, mas eu exijo que os manuais escolares incluam Couto Misto na sua matéria! É ridículo que, passados tantos séculos, Couto Misto continue a ser ignorado e votado ao esquecimento!

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